Quarta-feira, 9 de Maio de 2007

MAMÃE FAZ 100 ANOS

Quem diria que ela chegaria aos 100 anos. Outro dia, outro dia mesmo (na década de 80) eu lia do escritor russo Máximo Gorki (1868-1936), A Mãe (de 1907). E lia com os olhos deslumbrados de militante, numa época na qual o Brasil saía do processo de lenta e gradual abertura política e começava a tomar pé da coisa, exigindo eleições diretas e livres.
O escritor Gorki, pseudônimo que em russo quer dizer amargo, criou A Mãe inspirado num fato real, uma manifestação de primeiro de maio de 1902, na cidade de Sormovo, na qual manifestantes são presos e julgados por “perturbar” a ordem pública. Os personagens principais do livro são o operário fabril Piotr e sua mãe Ana Kirilovna Zalomova. Ele é preso e sua mãe toma seu lugar na luta política socialista. Ícone da chamada literatura engajada, A Mãe é com certeza o livro mais famoso do escritor, mas nem por isso é seu melhor trabalho. Contrariando o pseudônimo do escritor, A Mãe é uma ode triunfal ao socialismo e às lutas por justiça na sociedade como um todo. Embora rotulado sob a bandeira de um realismo socialista oficial, o romance de Gorki também traz elementos românticos.
O escritor Frei Betto, no prefácio de A Mãe publicado pela Expressão Popular recentemente, afirma que o livro faz parte das preocupações do escritor russo em retratar a chegada e a expansão do capitalismo na Rússia, em especial em obras que formam um conjunto composto por Os Três (1900), A Mãe (1907), A cidade de Okurov (1909) e A Vida de Matvey Kozemjakim (1910).
Assim como no filme alemão de 2003, Adeus, Lênin!( do diretor Wolfganger Becker), A Mãe de Gorki desperta hoje num mundo transformado e transtornado, já sem o império soviético e o muro de Berlim. Um mundo esquisito, povoado por guerras, fundamentalismos e terrorismos religiosos e de mercado. O mundo sob o risco de um conflito nuclear e também o mundo devastado pela modernidade e seus desastres humanos e ecológicos. Talvez as coisas fossem mais simples em 1907. Hoje, apesar da crise do capitalismo global, que como um monstro devora seu próprio corpo e filhos, vemos um mundo de fronteiras e conflitos. Um outro muro divide os EUA do México e tal edificação é ao mesmo tempo concreta e simbólica, dividindo as pessoas e etnias numa realidade na qual o capital é hegemônico. Talvez as coisas fossem “simples” como no livro O Estado e a Revolução de Lênin... tratava-se de organizar o partido, tomar o Estado pela força e implantar a ditadura do proletariado. Mas a própria América Latina e em particular o Brasil demonstram bem que tal equação não se resolve rapidamente. Vejamos o caso nacional, no qual uma frente “popular” chegou ao “poder” do Estado através de eleições democráticas, mas não operou a uma transformação mínima da realidade das coisas.
Pois bem, Mamãe desperta aos 100 anos e mira-se num espelho enferrujado. Ela liga a TV, esse olho-espelho eletrônico e vê que nada mudou e que tudo mudou ao mesmo tempo. As fábricas, sob o signo da robótica, já não admitem mais tantos operários, os sindicatos burocratizados ou mesmo estão atrelados à práticas entreguistas. Os soberbos condomínios fechados recriam o paraíso na terra. As favelas são misto de purgatório/inferno ou pior. Os shoppings com suas luzes de eterno dia de consumo nos induzem a uma viagem na irrealidade cotidiana. Mamãe toma o remédio pra dormir e “sonha” que o mundo real é um filme ou um programa de TV de imagens calidoscópicas.
O cineasta Carlos Saura nos acorda com seu “Mamãe Faz 100 Anos”. Encontro a cópia em VHS numa locadora daqui do bairro. Pergunto quanto é a locação. E a moça sorridente me pergunta de volta por que ainda tenho vídeo. Digo que é pra assistir filmes velhos, como esse dos anos 80. Ela sugere que eu pague a locação e fique com o filme pra mim já que tudo hoje é digital e que a locadora está se livrando daqueles filmes velhos. Produzido na mesma época em que eu lia A Mãe (de Gorki), o filme de Saura tem como atriz principal a atriz Rafaela Aparício (a mãe), que representa a velha Espanha, castradora, onisciente e onipotente. Mas alguma coisa mudou. As meninas cresceram ( uma se tornou masculinizada e militarista e a outra sedutoramente libertina), Juan fugiu com a cozinheira, Luchy deixou de ser tímida para revelar-se uma ambiciosa mulher de negócios. E, sem muitas ilusões, a velha observa meio que pasma seus filhos a traírem. E, em torno dela, num grande casarão, se reúne a família para uma grande festa de comemoração dos 100 anos.

 

( Ao amigo e professor  Paulo Bezerra, tradutor de Dostoiévski no Brasil)

 

 


publicado por novojornalismo às 20:54
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1 comentário:
De olharesgeograficos a 10 de Maio de 2007 às 21:49
CArlos Azevedo, sua sacada foi muito boa, pois 100 anos depois a gente percebe que a obra vive, a mãe é uma criança que preza por uma utopia ativa. Parabens para você e para a mãe centenária. belo


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