Quem diria que ela chegaria aos 100 anos. Outro dia, outro dia mesmo (na década de 80) eu lia do escritor russo Máximo Gorki (1868-1936), A Mãe (de 1907). E lia com os olhos deslumbrados de militante, numa época na qual o Brasil saía do processo de lenta e gradual abertura política e começava a tomar pé da coisa, exigindo eleições diretas e livres.
O escritor Gorki, pseudônimo que em russo quer dizer amargo, criou A Mãe inspirado num fato real, uma manifestação de primeiro de maio de 1902, na cidade de Sormovo, na qual manifestantes são presos e julgados por “perturbar” a ordem pública. Os personagens principais do livro são o operário fabril Piotr e sua mãe Ana Kirilovna Zalomova. Ele é preso e sua mãe toma seu lugar na luta política socialista. Ícone da chamada literatura engajada, A Mãe é com certeza o livro mais famoso do escritor, mas nem por isso é seu melhor trabalho. Contrariando o pseudônimo do escritor, A Mãe é uma ode triunfal ao socialismo e às lutas por justiça na sociedade como um todo. Embora rotulado sob a bandeira de um realismo socialista oficial, o romance de Gorki também traz elementos românticos.
O escritor Frei Betto, no prefácio de A Mãe publicado pela Expressão Popular recentemente, afirma que o livro faz parte das preocupações do escritor russo em retratar a chegada e a expansão do capitalismo na Rússia, em especial em obras que formam um conjunto composto por Os Três (1900), A Mãe (1907), A cidade de Okurov (1909) e A Vida de Matvey Kozemjakim (1910).
Assim como no filme alemão de 2003, Adeus, Lênin!( do diretor Wolfganger Becker), A Mãe de Gorki desperta hoje num mundo transformado e transtornado, já sem o império soviético e o muro de Berlim. Um mundo esquisito, povoado por guerras, fundamentalismos e terrorismos religiosos e de mercado. O mundo sob o risco de um conflito nuclear e também o mundo devastado pela modernidade e seus desastres humanos e ecológicos. Talvez as coisas fossem mais simples em 1907. Hoje, apesar da crise do capitalismo global, que como um monstro devora seu próprio corpo e filhos, vemos um mundo de fronteiras e conflitos. Um outro muro divide os EUA do México e tal edificação é ao mesmo tempo concreta e simbólica, dividindo as pessoas e etnias numa realidade na qual o capital é hegemônico. Talvez as coisas fossem “simples” como no livro O Estado e a Revolução de Lênin... tratava-se de organizar o partido, tomar o Estado pela força e implantar a ditadura do proletariado. Mas a própria América Latina e em particular o Brasil demonstram bem que tal equação não se resolve rapidamente. Vejamos o caso nacional, no qual uma frente “popular” chegou ao “poder” do Estado através de eleições democráticas, mas não operou a uma transformação mínima da realidade das coisas.
Pois bem, Mamãe desperta aos 100 anos e mira-se num espelho enferrujado. Ela liga a TV, esse olho-espelho eletrônico e vê que nada mudou e que tudo mudou ao mesmo tempo. As fábricas, sob o signo da robótica, já não admitem mais tantos operários, os sindicatos burocratizados ou mesmo estão atrelados à práticas entreguistas. Os soberbos condomínios fechados recriam o paraíso na terra. As favelas são misto de purgatório/inferno ou pior. Os shoppings com suas luzes de eterno dia de consumo nos induzem a uma viagem na irrealidade cotidiana. Mamãe toma o remédio pra dormir e “sonha” que o mundo real é um filme ou um programa de TV de imagens calidoscópicas.
O cineasta Carlos Saura nos acorda com seu “Mamãe Faz 100 Anos”. Encontro a cópia em VHS numa locadora daqui do bairro. Pergunto quanto é a locação. E a moça sorridente me pergunta de volta por que ainda tenho vídeo. Digo que é pra assistir filmes velhos, como esse dos anos 80. Ela sugere que eu pague a locação e fique com o filme pra mim já que tudo hoje é digital e que a locadora está se livrando daqueles filmes velhos. Produzido na mesma época em que eu lia A Mãe (de Gorki), o filme de Saura tem como atriz principal a atriz Rafaela Aparício (a mãe), que representa a velha Espanha, castradora, onisciente e onipotente. Mas alguma coisa mudou. As meninas cresceram ( uma se tornou masculinizada e militarista e a outra sedutoramente libertina), Juan fugiu com a cozinheira, Luchy deixou de ser tímida para revelar-se uma ambiciosa mulher de negócios. E, sem muitas ilusões, a velha observa meio que pasma seus filhos a traírem. E, em torno dela, num grande casarão, se reúne a família para uma grande festa de comemoração dos 100 anos.
( Ao amigo e professor Paulo Bezerra, tradutor de Dostoiévski no Brasil)