Sábado, 4 de Outubro de 2008
Mesmo condenado a vagar errante pela Terra, Caim ignorou a punição e resolveu se estabelecer, fixar-se em um lugar. Na sua cabeça não tinha cometido nenhum erro ao retirar de cena aquele chato e fracote do Abel. Como filho mais forte, merecia tudo, tudo mesmo. Foi assim que Caim abriu um bar.
O Bar do Caim era um estabelecimento dos mais bem freqüentados do bairro universitário. Eram seus clientes professores cabeça, militontos políticos, músicos ávidos a demonstrar suas habilidades de compositores não aproveitados pela indústria fonográfica, entre outros seres estranhos, muito estranhos...
Com esforço próprio e apoio de seus seletos e dependentes clientes Caim prosperou. Permanecia um homem simples, de hábitos e trajes que não levantariam suspeitas de sua condição de novo rico. Os vizinhos o tinham como um cidadão exemplar, apesar do barulho que o estabelecimento fazia ao varar as madrugadas nas patuscadas de servidores públicos embriagados. A lei do silêncio era facilmente comprada com algumas doses de bom uísque. E, sem falar na chamada lei seca, que no Bar do Caim nem pegou. Todos chegavam fartamente motorizados e saíam, após as rabelesianas bebedeiras, embriagados e ao volante.
Os clientes de Caim se consideravam uma elite criativa dionisiacamente embriagada. De lá, saíram muitas músicas, panfletos políticos, poemas, amores, grupos carnavalescos, teses, dissertações e até uma entidade de defesa do puro forró, patrimônio imaterial do povo nordestino, que está sendo falsificado pela indústria cultural.
O sucesso e o sossego Bar do Caim não tardaria de ser perturbado pelos impiedosos vizinhos que teimavam em querer dormir todas as madrugadas. E também alguns outros fiscais de impostos sempre a procurar um erro onde não há. Mesmo assim, para êxito da criativa missão dos freqüentadores do lugar, por sorte, o estabelecimento parece intocado.
De repente, tudo muda quando decide se estabelecer ao lado do Bar do Caim outro sujeito. Fraco, baixinho, de poucas palavras, Abel não tinha morrido coisa alguma. Para desespero dos vizinhos, o Bar do Abel copiou a fórmula de sucesso do irmão novo rico. Dentro do possível tem dado certo. Os bêbados freqüentadores dos dois estabelecimentos já estão tramando até uma reconciliação entre os dois filhos de Adão e Eva...
Sexta-feira, 12 de Setembro de 2008
Pedi emprestado ao poeta e músico titã Arnaldo Antunes a maneira concreta de quebrar/colar palavras e sentidos. Resolvi pescar e brincar com algumas delas, retiradas de páginas de jornal. Empilhadas como caixas sem sentido elas perdem a cor e ganham sonoridades.
Tijolo. Cabo. Cimento. Obrigatório. Democracia. Demagogia. Dentadura. Óculos. Laqueadura. Ditadura. Bandeira. Arrastão. Branco. Voto. Nulo. Opção. Rejeição. Luta. Eleitor. Continuidade. Tropas. Eleito.
Lula. Suplente. Azul. Parente. Sucessão. Acordo. Tucano. Galo. Jurídico. Cabine. Jogador. Raposa. Eleitor. Segurança. Torcedor. Traição. Educação. Secreta. Comício. Indevassável.
Fraude. Cargos. Proibido. Amarelo. Registro. Juízes. Permitido. Eletrônica. Assembléia. Líder. Governo. Secretário. Motorista. Animador. Cabeceiro. Estado. Bagunça. Eleitoral. Reclamação. Entidade. Solenidade. Sancionar. Vermelho.
Público. Enganar. Privado. Conflito. Olho. Privatizar. Atrair. Trair. Destemperado. Decisão. Importante. Discordante. Mesa. Cadeira. Pé. Urna. Orelha. Assessores. Língua. Jaula. Pedra. Estação.
Mudança. Fé. Ação. Ovelha. Cão. Pastor. Cavalo. Padre. Escândalos. Debate. Mão. Pancadaria. Agressões. Militantes. Meliantes. Lamentação. Bispo. Mulher. Bandeira. Partidários. Passeata. Punição. Vigilância. Pão. Caixão.
Televisão. Carreata. Lei. Seca. Chuvas. Poluição. Alvo. Eleitor. Convocação. Serviço. Marketing. Impedimento. Promessa. Pessoas. Partidários. Comportamento. Sujeira. Amostragem. Diretor. Escândalo. Modéstia. Acusação. Megafone. Rádio. Defesa. Guia. Resposta. Anseios. Nada.Tudo. Outubro.
Quarta-feira, 13 de Agosto de 2008
Não sei se por falta de leitores ou mesmo por questão de ausência de espaço, o fato é que o gênero jornalístico editorial sumiu das páginas do jornal Correio da Paraíba.
Ao que parece, pouca gente deu fé do sumiço do editorial das páginas de Opinião. Definido em A opinião no jornalismo Brasileiro (de 1985), pelo professor e catedrático José Marques de Melo como sendo o gênero jornalístico que expressa a opinião oficial da empresa diante dos fatos de maior repercussão do momento, o editorial foi seqüestrado das páginas do jornal. Em estudo posterior sobre os gêneros jornalísticos na Folha de S. Paulo, publicado dois anos depois, o renomado professor mostra que houve uma modernização na produção do editorial no jornal paulista, ressaltando a postura crítica do veículo, em consonância com sua opção político-mercadológica. Em outras palavras, o editorial serve sim para alguma coisa, ainda há chance para esse gênero se inserir na contemporaneidade.
Num estudo que objetiva dar nova configuração à teoria dos gêneros jornalísticos na atualidade, o professor Manuel Carlos Chaparro publicou recentemente um livro que tem como título Sotaques d´aquém e d´além mar (Summus, 2008). Trata-se de uma tese de jornalismo comparado que analisa a configuração dos gêneros jornalísticos em oito dos principais jornais do Brasil e de Portugal. Unidos pela língua e divididos pelo mar, os dois países têm jornalismos diferentes, apesar da história em comum. Amparado em dados de pesquisa quantitativa, Chaparro rompe teoricamente com o professor Marques de Melo, afirmando que a divisão entre notícia (news) e comentário (comments) perdeu sua atualidade. E que no período de 1985 a 1993, houve uma verdadeira revolução no jornalismo brasileiro com o chamado Projeto Folha, que foi seguido a reboque por diversos veículos da imprensa nacional e regional. Assim, não só aconteceu um processo de modernização produtiva com a introdução da informática nas redações, mas também o surgimento de um jornalismo de serviço que traz consigo novos gêneros e modifica os tradicionais.
Tão atentos ao cotidiano da província, os cronistas sequer notaram que o velho editorial tinha sumido das páginas do jornal Correio da Paraíba. Ensimesmados, os cronistas e articulistas festejaram silenciosamente a fartura de espaço com os funerais do principal gênero jornalístico. Com a morte do editorial, sobrou espaço também para a voz do leitor, esse desconhecido que cultiva o hábito de acompanhar o cotidiano da cidade por meio de folhas impressas. Agora, ele pode também dar a sua contribuição para o debate democrático na coluna “Dos leitores”.
Vivo, morto, sumido? O editorial faz falta sim nas minhas aulas da disciplina de Jornalismo Informativo, Opinativo e Interpretativo. É com ele que eu ensino como se deve construir um discurso opinativo/argumentativo. Com o editorial longe das páginas, corremos o risco de confundir a tão sagrada opinião do jornal com as divertidas charges do multimídia C. Tadeu ou com os comentários sempre bem ancorados do jornalista Josival Pereira na coluna política Informe. É nesse cantochão, nesse ofício que se faz pelos mortos, que eu louvo o editorial como um gênero que não deve desaparecer.
Carlos Azevedo é jornalista e professor do curso de Comunicação Social da Umiversidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Terça-feira, 26 de Junho de 2007
Somos todos piratas de Jaguaribe (ooops!!! do Caribe!). Entre ordem e a desordem, optamos por destruir binarismos. Se bem que a ordem dos piratas é fundada em moedas, ou melhor, na falta delas. E é bom lembrar uma nação é fundada em cima de uma única e viciada moeda: a linguagem-território. Somos piratas e a nossa pátria (se é que ela existe) é o mar. O mar com suas delícias e cromatismos, simbolismos etc. Mas também o mar com seus monstros bem humanos: o homem-polvo, o homem-tubarão entre outros membros do bestiário pós-nacional. Embarquemos no Pérola Negra e em todas as suas simbologias. Calipso e todas as suas selvagens forças incontroláveis, que nos assustam e seduzem. Netuno retraduzido em fêmea. Entre um naufrágio e outro, a busca do eterno porto. O baú da morte e da eternidade. Se bem que os ingleses, esses piratas de farda, tentaram. Mas os monstros marinhos do pós-colonialismo, o outro lado “mesmo” da moeda, venceram. E não houve civilização nem barbárie, somente o mar. Impenetravelmente feminino sem ser casto, o esquizofrênico mar nos dava limites. Limites nem por muito tempo aceitos. Então enfrentamos monstros de nós mesmos, o espaço e suas imaginações. Ainda não descobrimos a fonte de tudo. Será que ela se encontra em Cuba de Fidel ou na prisão de Guantánamo? A força dos homens jamais será desperdiçada. Com o nascer do sol, o mito sempre se renovará em outras histórias náufragas de sentido. O coração do pirata se esconderá num baú atômico os nos escombros de um 11 de setembro qualquer, apesar da morte. Um pê escrito a ferro, carne e fogo com as dores do mundo será nossa senha, para sempre nos lembrar que somos piratas. Assim, ao mercosul, nossa desunião será banquete na mesa do inimigo. Entre monstros que somos, alguém nos lembrará de uma canção esquecida e todos intuitivamente cantarão, ate que lhes seja roubada a voz.
Domingo, 3 de Junho de 2007
Pensar e sentir essa coisa absurda que chamamos tempo deve ser o motivo pelo qual me lanço sempre no início de cada ano na leitura de qualquer livro de ou sobre o escritor Franz Kafka (1883-1924). É ao mesmo tempo uma mania e uma obrigação. Mas sempre ocorrem imprevistos. No ano passado, por exemplo, estava me programando para ler “Kafka vai ao cinema” quando um aluno metido a espertalhão me surrupiou cinicamente o exemplar, usando aquela gasta fórmula do “me empresta que eu leio rápido e num instantinho eu te devolvo”.
Desde o ano passado venho me prevenindo. Agora compro e escondo o livro. Dessa vez, é a hora da leitura de Histórias em Quadrinhos (HQ´s), com o a brilhante adaptação de “A metamorfose”, por Peter Kuper, publicada pela Conrad em 2004. Escrita originalmente em 1915, trata-se de um livro do nosso tempo, uma espécie de diagnóstico de uma “doença” que afeta a condição humana: a alienação. Palavra muito cara aos marxistas e um dos sintomas da chamada modernidade, a alienação faz parte do cotidiano humano. O artista gráfico Kuper revela no livro que a adaptação do clássico fez com que ele unisse duas paixões do tempo da infância: o desenho e os insetos. “Kafka pode não ter sido fã dos quadrinhos, mas seus personagens angustiados em cenários de realidade alterada são feitos sob medida para esta mídia”, revela o desenhista no prefácio. Ele nos mostra ainda que se inspirou em Kafka para a criação da HQ por conta da habilidade do escritor em abordar a condição humana, já que na sua obra existem julgamentos grotescos e burocracias inflexíveis, coisas que para o desenhista, são comuns no mundo de hoje, basta ler os jornais. Os desenhos de Kuper são bastante econômicos em relação ao traço e ele sempre prefere o preto e branco, fazendo uma adaptação ao mesmo tempo minimalista e fiel ao clássico kafkiano.
Ainda para a leituras desse início de ano, ainda privilegiei as HQ´s . Reservei o livro “Kafka de Crumb” (Relume Dumará, 2006), uma espécie de vida e obra do escritor nascido em Praga. Com desenhos de Robert Crumb e textos de David Zane Mairowitz, o livro não é uma grande novidade saída do forno (ou melhor do lápis) mas sim de uma reedição de um trabalho lançado em 1993. Com uma capa verde a la Incrível Hulk, o senhor K nos encara com seus olhos absurdos. Pioneiro dos HQ´s undergrounds dos EUA, Crumb aliou seu traço a um cara sacado, David Zane, para produzir um livro ao mesmo tempo informativo e divertido. O Kafka de Crumb é um passeio particular pela vida do escritor e uma introdução à sua obra. Em relação ao escritor nascido em Praga, o livro problematiza algumas questões essenciais tais como o sionismo e anti-sionismo, a atração do jovem Kafka por relacionamentos amorosos e suas cartas etc. Na questão da obra, eles mostram comentários interessantes sobre “A metamorfose”, “Na colônia penal”, “A toca”, “O processo”, “Carta ao Pai”, “O castelo” entre outras. Dessa vez não temos um traço minimalista de um Kuper, mas um desenho que explora os tons cinza, o vazado e as expressões faciais. Mesmo assim, o preto fere a página em branco, criando sensações visuais interessantes.
Os HQ´s “A metamorfose” (Kuper) e “Kafka de Crumb” revelam um diálogo entre vida e obra de um escritor que questionou a modernidade e que com certeza prematuramente inaugurou uma discussão sobre os limites da representação na literatura e seus traumas pós-modernos. Nem mesmo o senhor K nem Gregor Samsa iriam dessa vez estranhar se entre fevereiro ou março eles fossem metamorfoseados, transformados em tirinhas, desenhos. A literatura sim meio que constrangida agradece aos mestres do traço, por estar deitada num quarto agitando impacientemente as patinhas...
Pra quem se interessar:
Kafka de Crumb
Relume-Dumará
2006
R$ 36
A metamorfose
Conrad
2004
R$19
Terça-feira, 15 de Maio de 2007
Uma ladeira e um semáforo que abre e fecha rapidamente impedem o motorista apressado de ver uma pequena sala na Rua Índios Cariris, em Campina Grande. É no número 218 que fica o escritório de um dos maiores especialistas em objetos antigos da Paraíba, o antiquário Mário Lúcio Lima. O espaço parece pequeno, mas comporta tudo: cristaleiras, rádios, radiolas, lustres, penteadeiras, cabides, armários, birôs e até nomaradeiras.
A paixão de Mário é pelos rádios. Eles estão espalhados, empilhados como pequenas caixas tagarelas de variados modelos: um Montreal (canadense), um Campeão ao lado de um Nord Som (ambos fabricados no bairro do Brás, na capital paulista), outro Transbrasil (ABC Canarinho) e até um “moderno” CCE estéreo. Algumas caixas lembram o desenho e o arrojo da arquitetura de Brasília, são pequenos “prédios” com curvas acentuadas.
Há 15 anos no ramo de dar vida nova a aparelhos que na opinião da maioria modernosa não passam de lixo, Mário é um apaixonado pelos objetos falantes: além dos rádios ele também conserta telefones antigos. Com paciência, tal qual uma criança curiosa, ele compra aparelhos bem desgastados e os transforma em novos. Assim, aprendeu marcenaria para fazer sozinho as caixas de madeira, que são verdadeiros ninhos que escondem as válvulas dos rádios.
Em plena era do chip ou da microeletrônica, ele lembra seu primeiro rádio um CCE que ganhou aos nove anos. Mário não esconde a relação entre rádio e infância. Uma nostalgia não o deixa parar. Satisfeito ele atende a outro homem como se brincassem juntos. O homem quer comprar um Cabeça de Índio. Mário explica em ondas curtas, tropicais ou médias, num tempo em que as elites vivem um consumismo sem limites, que os rádios antigos são peças únicas. O comprador confessa que se lembrou do pai ao ver os rádios expostos. O antiquário pacientemente explica que os objetos trazem ao espectador lembranças, subjetividades, transportando-o para um lugar perdido no tempo, a voz da infância. Vivemos no topo de uma revolução informacional, das web rádios entre outras novidades mas o bom e velho rádio será sempre o meio preferido de diversão e comunicação. “Quando surgiu a Tv todo mundo dizia que o rádio iria morrer. Veio a tv, a tv colorida, a estéreo, a tv de plasma, a digital e o rádio está vivo, vivinho!”
Pergunto o que ele acha das músicas que tocam hoje em quase todas as emissoras comerciais. “Sinceramente, prefiro a velha guarda, um Nelson ou um frevo de Capiba, tudo tem sua cadência.”
Saudosista, Mário segue assim sintonizado com seu tempo...
Quarta-feira, 9 de Maio de 2007
Quem diria que ela chegaria aos 100 anos. Outro dia, outro dia mesmo (na década de 80) eu lia do escritor russo Máximo Gorki (1868-1936), A Mãe (de 1907). E lia com os olhos deslumbrados de militante, numa época na qual o Brasil saía do processo de lenta e gradual abertura política e começava a tomar pé da coisa, exigindo eleições diretas e livres.
O escritor Gorki, pseudônimo que em russo quer dizer amargo, criou A Mãe inspirado num fato real, uma manifestação de primeiro de maio de 1902, na cidade de Sormovo, na qual manifestantes são presos e julgados por “perturbar” a ordem pública. Os personagens principais do livro são o operário fabril Piotr e sua mãe Ana Kirilovna Zalomova. Ele é preso e sua mãe toma seu lugar na luta política socialista. Ícone da chamada literatura engajada, A Mãe é com certeza o livro mais famoso do escritor, mas nem por isso é seu melhor trabalho. Contrariando o pseudônimo do escritor, A Mãe é uma ode triunfal ao socialismo e às lutas por justiça na sociedade como um todo. Embora rotulado sob a bandeira de um realismo socialista oficial, o romance de Gorki também traz elementos românticos.
O escritor Frei Betto, no prefácio de A Mãe publicado pela Expressão Popular recentemente, afirma que o livro faz parte das preocupações do escritor russo em retratar a chegada e a expansão do capitalismo na Rússia, em especial em obras que formam um conjunto composto por Os Três (1900), A Mãe (1907), A cidade de Okurov (1909) e A Vida de Matvey Kozemjakim (1910).
Assim como no filme alemão de 2003, Adeus, Lênin!( do diretor Wolfganger Becker), A Mãe de Gorki desperta hoje num mundo transformado e transtornado, já sem o império soviético e o muro de Berlim. Um mundo esquisito, povoado por guerras, fundamentalismos e terrorismos religiosos e de mercado. O mundo sob o risco de um conflito nuclear e também o mundo devastado pela modernidade e seus desastres humanos e ecológicos. Talvez as coisas fossem mais simples em 1907. Hoje, apesar da crise do capitalismo global, que como um monstro devora seu próprio corpo e filhos, vemos um mundo de fronteiras e conflitos. Um outro muro divide os EUA do México e tal edificação é ao mesmo tempo concreta e simbólica, dividindo as pessoas e etnias numa realidade na qual o capital é hegemônico. Talvez as coisas fossem “simples” como no livro O Estado e a Revolução de Lênin... tratava-se de organizar o partido, tomar o Estado pela força e implantar a ditadura do proletariado. Mas a própria América Latina e em particular o Brasil demonstram bem que tal equação não se resolve rapidamente. Vejamos o caso nacional, no qual uma frente “popular” chegou ao “poder” do Estado através de eleições democráticas, mas não operou a uma transformação mínima da realidade das coisas.
Pois bem, Mamãe desperta aos 100 anos e mira-se num espelho enferrujado. Ela liga a TV, esse olho-espelho eletrônico e vê que nada mudou e que tudo mudou ao mesmo tempo. As fábricas, sob o signo da robótica, já não admitem mais tantos operários, os sindicatos burocratizados ou mesmo estão atrelados à práticas entreguistas. Os soberbos condomínios fechados recriam o paraíso na terra. As favelas são misto de purgatório/inferno ou pior. Os shoppings com suas luzes de eterno dia de consumo nos induzem a uma viagem na irrealidade cotidiana. Mamãe toma o remédio pra dormir e “sonha” que o mundo real é um filme ou um programa de TV de imagens calidoscópicas.
O cineasta Carlos Saura nos acorda com seu “Mamãe Faz 100 Anos”. Encontro a cópia em VHS numa locadora daqui do bairro. Pergunto quanto é a locação. E a moça sorridente me pergunta de volta por que ainda tenho vídeo. Digo que é pra assistir filmes velhos, como esse dos anos 80. Ela sugere que eu pague a locação e fique com o filme pra mim já que tudo hoje é digital e que a locadora está se livrando daqueles filmes velhos. Produzido na mesma época em que eu lia A Mãe (de Gorki), o filme de Saura tem como atriz principal a atriz Rafaela Aparício (a mãe), que representa a velha Espanha, castradora, onisciente e onipotente. Mas alguma coisa mudou. As meninas cresceram ( uma se tornou masculinizada e militarista e a outra sedutoramente libertina), Juan fugiu com a cozinheira, Luchy deixou de ser tímida para revelar-se uma ambiciosa mulher de negócios. E, sem muitas ilusões, a velha observa meio que pasma seus filhos a traírem. E, em torno dela, num grande casarão, se reúne a família para uma grande festa de comemoração dos 100 anos.
( Ao amigo e professor Paulo Bezerra, tradutor de Dostoiévski no Brasil)
Quarta-feira, 2 de Maio de 2007
Outro dia, visitei a fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo. Forte silêncio, já imortalizado pelo poeta paraibano Saulo Mendonça. Impossível não se transportar a outros tempos quando se visita aquele espaço. É involuntário o devaneio.
O escritor universalmente argentino Julio Cortázar (1914-1984) nos expressa tal sensação no seu “Prosa do Observatório” a partir do antigo ponto de observação astronômico construído por um sultão, na Índia.
Mas não queria falar de Cortázar ou mesmo do nosso forte e sim de um livrinho chamado “Bagagem lírica- apontamentos de uma viagem literária” (editora Sal da Terra, 2005) escrito pelo paraibano André Ricardo Aguiar e pela portuguesa Margarida Ribeiro. É interessante como os espaços carregam história e como eles nos impactam. É um pouco o que Blake dizia: caminhamos sobre as cabeças de nossos mortos.
O brasileiro e a portuguesa nos lançam inicialmente a um pórtico que uma advertência sobre a viagem. O livrinho de 60 páginas não é um guia de viagem para turistas nem segue um roteiro coerente. Trata-se sim de uma viagem aos pulos, de uma viagem na qual o que importa é a bagagem lírica.
Aldeias, costumes e castelos se mesclam numa prosa viva, num verdadeiro diálogo pós-colonial entre povos irmãos, entre homem e mulher. Claro que o passado traz a memória da colonização. O livro de André e Margarida situa-se como se o Brasil “descobrisse” Portugal aos 500 anos. Não com a gana de conquistar ou dominar, mas de sentir, deixar-se levar pela humana paisagem, pelos elementos, pelas experiências. Lusíadas imagens, lusitana saudade cravadas na pedra da memória.
Bagagem lírica traz em si o discurso da pedra que carrega o passado e o futuro, a runa. A pedra, como diria o pensador dos elementos Gaston Bachelard(1884-1962), está presente em todos os diálogos como sinônimo de civilização, mas também de anterioridade e de eternidade. A fenda da pedra portuguesa, cravada num castelo ou forte visitado pelos dois autores, ao mesmo tempo os protege da chuva repentina e também os acolhe como grande útero protetor. E o que a água do mar separa a chuva une, numa dinâmica entre o doce e o salgado.
E ao retornar de tal viagem sentimental, por que não lembrar Laurence Sterne (1713-1768), no qual o viajante não busca paisagens nem monumentos mas pequenas impressões, causadas principalmente pelo elemento humano. E também, por que não também lembrar das cidades imaginadas de Ítalo Calvino? Tudo isso numa cidade “quatrocentona” como a capital da Paraíba.
Quinta-feira, 29 de Março de 2007
Transplantados
Carlos Azevedo Filho
Fica decretado que seja transplantada a solidariedade. Fica decretado sim, mesmo que não se tenha poder para isso, de que todos se preocupem com o drama dos transplantados exibido cotidianamente pela televisão CORREIO.
Decrete-se também que não haja vácuo institucional ou político entre os governos estadual e federal e que cada um cumprirá com suas atribuições, garantindo aos transplantados o direito à vida.
Penso que mesmo que não possamos decretar que mesmo assim seja determinado que a vida seja estendida pelos poderes da medicina e da ciência. Ricos ou pobres têm direito a receber um rim ou um coração novo.
Decrete-se também que a imprensa cumpra seu papel de fiscalizador dos poderes e que possa denunciar a falta criminosa de remédios que ajudam a combater as rejeições dos órgãos transplantados, mesmo que alguns pensem que isso é uma campanha política desses ou daquele cordão das oligarquias locais.
Decretem também que haja uma atenção multidisciplinar aos pacientes transplantados e um amplo apoio de solidariedade com campanhas e algo mais. Que farmacêuticos, médicos e enfermeiras não vejam os transplantados como teimosos que tentam a todo custo permanecer entre nós. E que se sobre alguma solidariedade, que se construa um centro digno de atendimento aos transplantados.
Fica decretado que não se tenha a necessidade de decretos ou medidas provisórias para que as coisas se resolvam simplesmente sem burocracia, porque simplesmente os transplantados como humanos têm o direito fundamental à vida.
Fica decretado que a vida seja um valor fundamental ao sistema de saúde do país, do estado ou da cidade. Fica decretado que se invista menos em publicidade enganosa e que o dinheiro seja empregado realmente na melhoria das condições de saúde da população. De que pessoas não cumpram a via crucis de hospital em hospital, em ambulâncias precárias no interior do Estado.
Fica decretado que o transplante seja um gesto de utopia e de amor à vida, que a vida se multiplique em gestos de doação e esperança. Fica decretado de que a luta daqueles que lutam para viver supere o medo e a rejeição. E mesmo que haja dor e partida, que ela seja mínima e cercada de humanidade.
Fica decretado que o coração continue a pulsar nos lembrando que somos mortais. E que mesmo que o milagre seja negligenciado pela cegueira insensível e burocrática dos poderes, a vida deve seguir seu curso, forte, sem explicação, como uma chuva que cai de repente e faz florir uma paisagem em todas as cores e tons.
Domingo, 25 de Março de 2007